História (1979-1985)


Em 1979, um grupo de religiosos e advogados iniciou um projeto extremamente ambicioso: obter junto ao Superior Tribunal Militar (STM), em Brasília, informações e evidências de violações aos direitos humanos praticadas por agentes do aparato repressivo do Estado durante a ditadura militar (naquela época ainda em curso), para compilar essa documentação em um livro-denúncia. Pretendia-se, ainda, evitar o possível desaparecimento dos documentos durante o processo de redemocratização. Considerava-se que a preservação desses elementos era indispensável como fonte de pesquisa sobre essa fase da história do Brasil.

Os advogados, a partir da consulta aos processos que envolviam a defesa de presos políticos constataram o valor histórico e jurídico dos documentos existentes no Tribunal. Mereceram especial atenção os depoimentos prestados no âmbito das auditorias militares, pois uma parte dos presos políticos denunciou e detalhou as práticas de violência física e moral que sofreu ou presenciou.

Os mentores do projeto – em especial a advogada Eny Raimundo Moreira – perceberam que os processos relacionados a presos políticos poderiam ser reproduzidos, aproveitando-se do prazo de 24 horas facultado pelo Tribunal para a custódia provisória de autos.

Jaime Wright A ideia foi levada ao Reverendo da Igreja Presbiteriana Jaime Wright e, em seguida, ao Cardeal da Igreja Católica Dom Paulo Evaristo Arns, que a acolheram e resolveram comandar as atividades a partir de São Paulo. Os recursos financeiros necessários foram solicitados e obtidos com o secretário-geral do Conselho Mundial de Igrejas-CMI, Philip Potter, com o auxílio de Charles Roy Harper Jr., pastor e membro daquela entidade.

Paulo Evaristo ArnsCom a chegada dos fundos ao Brasil, no início de 1980, Luiz Carlos Sigmaringa Seixas coordenou a operação de extração de cópias dos processos no Superior Tribunal Militar. Ele alugou uma sala comercial e três máquinas copiadoras “xerox”, bem como contratou os funcionários, os quais acreditavam estar trabalhando para uma empresa copiadora “normal”. Em seguida, foram agregados os advogados que se dirigiam ao Tribunal para retirar os autos.

As cópias, então, eram remetidas a São Paulo, inicialmente em ônibus noturnos e, posteriormente, por meio de aviões de carreira, como carga desacompanhada, ou por carro. Surgiu neste momento a preocupação com a apreensão do material pela repressão. E, de fato, durante os trabalhos em 3 ocasiões houve temor de invasão dos locais de análise e guarda dos documentos pelas forças policiais e militares, o que obrigou as equipes a alterarem seus esconderijos. Diante dos recursos tecnológicos existentes à época, a alternativa para preservação do acervo foi microfilmar as páginas de todos os autos judiciais e remetê-las à sede do Conselho Mundial de Igrejas, em Genebra – Suíça. A responsabilidade pela logística em São Paulo foi assumida por Luiz Eduardo Greenhalgh.

Aproximadamente após seis anos de trabalho em sigilo, a tarefa foi finalizada. A reprodução dos 710 processos judiciais consultados totalizou cerca de 850 mil cópias em papel e 543 rolos de microfilmes. Ademais, foi produzido um documento-mãe, denominado “Projeto A”, com a análise e a catalogação das informações constantes dos autos dos processos judiciais em 6.891 páginas divididas em 12 volumes.

No Projeto A foi possível identificar, dentre outros dados, (i) quantos presos passaram pelos tribunais militares, (ii) quantos foram formalmente acusados, (iii) quantos foram presos, (iv) quantas pessoas declararam ter sido torturadas, (v) quantas pessoas desapareceram, (vi) quais eram as modalidades de tortura mais praticadas, e (vii) quais eram os centros de detenção. Ademais, foi possível listar os nomes dos médicos que davam plantão junto aos porões e os funcionários identificados pelos presos políticos.

Apensos aos processos do STM encontravam-se diversos objetos apreendidos, tais como panfletos, periódicos e textos de discussão teórica. Esses materiais também foram copiados (aproximadamente 10.000 documentos) e deram origem ao “arquivo de material apreendido”.

Capa do livro - Brasil: Nunca Mais

Considerando a dificuldade de leitura e até de manuseio deste trabalho, foi idealizado por Dom Paulo o “Projeto B”, um livro que resumisse o Projeto A em um espaço 95% menor. Para operacionalizar a tarefa foram escolhidos os jornalistas Ricardo Kotscho e Carlos Alberto Libânio Christo (Frei Betto), coordenados por Paulo de Tarso Vannuchi. A Editora Vozes (vinculada à Igreja Católica) aceitou publicá-lo, tendo-lhe sido atribuído o título de “Brasil: Nunca Mais”.

Assim, em 15 de julho de 1985, quatro meses após a retomada do regime democrático, foi lançado o livro “Brasil: Nunca Mais”. A publicação da obra mereceu destaque na imprensa nacional e internacional e o livro foi reimpresso vinte vezes somente nos seus dois primeiros anos de vida.


Torture in Brazil: A Shocking Report on the Pervasive Use of Torture by Brazilian Military Governments, 1964-1979, Secretly Prepared by the Archiodese of São Paulo

Sob o temor de possível censura ao conteúdo da obra, houve a iniciativa de publicar uma versão do livro no exterior. Um ano depois de seu lançamento no mercado nacional, chegou às livrarias dos Estados Unidos a publicação “Torture in Brazil”, editado pela Random House.

Dom Paulo decidiu doar toda a documentação do projeto a fim de torná-la pública. O conteúdo foi oferecido, inicialmente, à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e à Universidade de São Paulo, as quais declinaram do convite. Ofertado, então, à Universidade Estadual de Campinas, a instituição aceitou o acervo, com a promessa de disponibilizar amplamente o material para consulta e permitir sua reprodução.

Assim, tanto o Projeto A, quanto as cópias integrais dos 710 processos, foram transferidos ao Arquivo Edgard Leuenroth, fundado em 1974 e vinculado ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP (IFCH). A memória, portanto, estaria preservada.

D. Paulo também determinou que fossem efetuadas 25 cópias do Projeto A e encadernadas em capa dura, preta com letras douradas. Foram doadas 14 cópias para universidades, bibliotecas e centros de documentação de entidades dedicadas à defesa dos direitos humanos no Brasil e ofertadas 11 cópias para instituições estrangeiras.

Os 543 rolos originais de microfilmes com o conteúdo integral dos 710 processos reproduzidos do Superior Tribunal Militar foram enviados pelo Conselho Mundial de Igrejas ao Latin American Microform Project – LAMP, mantido no Center for Research Libraries – CRL, consórcio internacional de universidades, faculdades e bibliotecas independentes, sediado em Chicago, Estados Unidos da América. O LAMP é um projeto de manutenção e preservação de coleções de microfilmes latino-americanos raros e de relevância histórica. No LAMP/CRL o acervo é consultado por pesquisadores vinculados às universidades que compõem o consórcio.

No Brasil, desde 2005 o Centro de Referência Virtual Brasil Nunca Mais do Armazém Memória disponibilizou na internet cópia digital da íntegra do Projeto A, utilizando cópia doada para a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo no Largo de São Francisco. Esse projeto contou com recursos da FINEP (Ministério da Ciência e da Tecnologia) e parceria do Instituto Paulo Freire. Era o embrião do Brasil Nunca Mais Digit@l, que desde 2013 reúne esse acervo ao conteúdo integral dos 710 processos digitalizados, assim como ao conjunto de documentos mantidos pelo Conselho Mundial de Igrejas e pela Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo sobre o BNM.

Neste momento, é importante homenagear os conhecidos e anônimos que tornaram realidade o Brasil: Nunca Mais. Segundo Dom Paulo Evaristo Arns, cerca de 35 pessoas trabalharam no projeto. Conseguimos, até este momento, resgatar o nome dos seguintes participantes, além do próprio Dom Paulo e do Reverendo Jaime Wright e daqueles acima já citados: Madre Cristina (Célia Sodré Dória), Sonia Hipólito, Leda Corazza, Ana Maria Camargo, Carlos Lichtsztejn, Raul Carvalho, Cândido Pinto de Melo, Vanya Santana e Mario Simas.



VEJA TAMBÉM:

SOBRE NÓS | BNM DIGIT@L | VÍDEOS